domingo, 2 de maio de 2010

A porta da cozinha não impede o Diabo de entrar

Tem dias em que você não se importa com o que vai escrever. Nesse caso, era uma noite. Uma noite em que o coração batia tão apertado quanto batia gelado. E esse coração era o meu.

Sem nenhuma emoção, peguei uma caneta bic barata, roubada do balcão da recepção da onde estudo, e comecei a escrever sobre como o tempo e as coisas e o mundo e tudo mais fizeram meu amor secar, apodrecer e cair como uma pinha velha num dia de natal. Porém, ao passo que formava as letras sobre a folha amarela, percebi que aquilo não era mais eu. Não fazia mais parte de mim, simplesmente. Eu precisava ser sincero. Corri os olhos por sobre meu corpo e para dentro de mim, respectivamente. E o que vi, foi assombroso: um homem velho estava dentro das minhas calças largas para ficar em casa no frio, usando meu casaco de listras ridículo e calçando as minhas meias de jogador de futebol, que só servem para dormir.

Praticamente não tenho móveis em meu quarto, muito menos espelhos, mas não conseguia acreditar que fiquei por tanto tempo sem me ver, sem me enxergar.

Corri os dedos pelos meus cabelos; mas só para ganhar tempo. Com os mesmos dedos, rasguei a folha amarela aonde estava escrito sobre como o tempo e as coisas e o mundo e tudo mais fizeram meu amor secar, apodrecer e cair como uma pinha velha num dia de natal, e esse gesto me deu força, me sentia inspirado! O silêncio da casa e o barulho irritantemente excitante da caneta riscando a folha me davam tesão em voltar a fazer o que eu mais amava, o que eu fazia de melhor: sofrer as dores do parto de um texto concebido quase que assexuadamente. Como se um braço meu caísse na terra e dali germinasse um outro ser que também sou eu, mas não é meu. É uma parte de mim que dou para quem quiser e quem quiser pegar sem avisar, sem pedir ou pagar.

Como que entorpecido pelo meu ego de quase-artista, senti o mundo rodar e a mão doer sobre o peso da minha inspiração. "Porcaria!". Disse para mim mesmo, mas sem sequer mexer os lábios. Eram meus órgãos falando comigo. Dizendo que não me serviam de nada tantos corações ou pulmões ou rins ou cérebros se fosse para produzir algo daquele jeito. Ainda era o que eu fora em outrora. Num passado não muito distante, onde ainda existiam príncipes encantados, castelos luminosos e declamações de amor eterno num asfalto tardio. Num passado onde o sarcásmo não habitava.

Sem saber o que fazer, risquei todas as palavras lúdicas da folha amarela e arranhei minha garganta seca. Sede. Sentia sede. Num gesto natural, abri a porta do meu quarto que banhou de luz a escuridão do corredor. Caminhei irritado com minha falta de secura objetiva; sentia a garganta esquentar dentro de mim e a sede pedir para morrer.

Desci os degraus com cautela, não queria que ninguém acordasse. Mas, o que começo a relatar aqui para quem me lê é como descrever a luz sem jamais tê-la visto. Chegando na sala, percebi que alguém deixara a TV ligada no mudo. Aquela luz que parece dançar; ora um tango argentino, ora um samba de avenida; doeu-me nos olhos, mas me ajudou a encontrar o caminho para a cozinha.

Abri a geladeira sem pressa, peguei uma garrafa de plástico e derramei o líquido no copo. Abri o filtro e misturei as duas águas: a gelada com a de temperatura ambiente. Sentei-me de pernas cruzadas e pus-me a enrolar um tufo de cabelo e a beber a água, simultaneamente. "Parece que esfriou mais", pensei. Pensava no frio, nas palavras, na minha dor de dente que teria que esperar mais uma semana.

Uma espécie de "toc toc" bateu na minha cabeça e eu a balancei, como a querer espantar algum pensamento inprodutivo querendo entrar. Mas o barulho que pedia passagem insistiu tanto que me fez olhar para a porta da cozinha. Pelo vidro, do lado de fora, era possível ver um homem alto, elegante sem ser exatamente bonito, de cabelos negros e olhos indescritíveis, parado a porta. Não me pergunte como, mas eu sabia quem era ele.

"Não vai me deixar entrar?", perguntou, ele.
Era como se eu ouvisse a voz dele todos os dias, o tempo todo. Era tão familiar, porém tão falsamente materna. Como...Como um exímio vendedor. Como aqueles mascates que usavam do tom mais doce do tom mais doce para convecer da qualidade de seu produto.
"Acho que...não sou bem vindo aqui...", disse mais uma vez, vendo que eu não acreditava no que via.
"Não quero que você entre", disse sem saber que dizia aquilo.
"Ora...A porta da cozinha não impede o Diabo de entrar", respondeu com um sorriso debochado. Logo depois de dizer isso que acabei de contar, ele estava dentro da minha cozinha.

Apoiado na pia com uma classe jamais vista por homem algum, ele acendeu um cigarro jamais visto por nenhum ser humano e sussurrou uma fumaça azul encantada que pairava no ar como serpentinas adestradas. Deslumbrado com tamanha mise-en-scéne para adentrar um espaço, quase deixei cair o copo com água misturada.

"Sabe, é grosseria deixar uma visita de pé. Ainda mais se tratando de alguém tão importante como eu"
"E tão improvável", foi só o que consegui dizer.

"Nem tanto. Caso não tenha percebido, vou lhe contar com primazia: eu sou o que você vem procurando. Eu sou o novo. Seus diálogos de outrora e a sua língua portuguesa fadada ao esquecimento não comovem mais a você mesmo. Não aos outros; os outros, sim, admiram o que você faz. Mas, meu caro, a massagem no âmago do teu ego é o que te dá forças e impiedade para contiuar sendo quem você é e o que você faz."

"Pensei que fosse o diabo", respondi, confuso.

"Chame como queira", ele sentou como se flutuasse sobre a cadeira e me olhou nos olhos, com aqueles olhos sem descrição, sem cor. "Eu vim porque você precisava".

"Mas, como vou saber o que fazer? Sinto-me perdido, distante de mim. é como apostar corrida comigo mesmo. Meus diálogos com a vida morrem a cada dia e sinto se esvair o pouco que ainda tenho para dar..."

Ele riu. Ah, e a risada dele fez brilhar como gelo até o último átomo da minha alma. "A morte, meu caro...É necessário morrer todos os dias. A vida é uma invenção da matéria física. Desnecessária. Eu sei o que você precisa mais do que você mesmo. Mas não porque eu sei de tudo ou eu veja tudo, não...Eu sou uma parte de você ainda inalcançada por você mesmo. Um pedaço seu pairando pelo espaço. Sou sua antimatéria sugada por todo mundo. Menos por você."

"Eu não sou uma metáfora de você, nem uma suposição de você. Sou você. Só estou na sua frente, ganhando a corrida."

Enquanto ele falava de antimatéria e suposições da matéria, eu sentia a cabeça aliviar. Era estranho, porque eu estava diante do Diabo. Do Diabo em pessoa. Eu o via. Não deveria, sei lá, cair falando em línguas ou, ou...Ou sentir algum tipo de posessão?

Minha mente vagava frouxa, leve e sinuosa pelo ar, e era como poder toca-la nas bordas, como uma bolha de sabão, aonde a graça é o medo de estoura-la. Sentia-me esvaziar de tudo que eu fora no passado e me encher de algo novo. Com tudo que fica entre o medo e a vontade de viver. Era esse meu paradoxo.

O Diabo continuava a falar, eu continuava a entender, mas ainda tinha inúmeras dúvidas na cabeça. Não sei se falei algo ou não, mas ele respondeu:

"Essas dúvidas, meu amigo, são a poesia que você precisa para sofrer, desamar e retribuir a você mesmo, nas suas folhas amarelas, o tanto de dor que sente e espreme dos olhos teus todos os dias. Seria enfadonho lhe contar todos os segredos que sei sobre você, afinal, o que te move é a dúvida. Sei que você estava entediado. Tão entediado que me procurou inconscientemente. Mas eu sou você. Eu sou a parte mais ousada de todo e qualquer ser vivo que anda, respira e morre. Poucos adormecem com vontade de me/se conhecerem assim, dessa forma tão profunda e ilítica. O medo é comum a todos os homens; a necessidade, a angústia, são o motor, a engrenagem orgânica de quem se sente no inferno, e faz disso o fogo de todos os dias."

Seus olhos ganharam cor. A mesma cor que os meus. Vislumbrei o Diabo por uma última vez, e ele saiu da mesma maneira que entrou: pela porta da cozinha.

Depois desse dia, eu me tornei no meu próprio assassino. Eu mato a mim mesmo todos os dias.

2 comentários:

  1. Caralhooooow, essa última fala do Diabo matou o texto. Matou no melhor dos sentidos, deu um desfecho desses de deixar a gente sem palavras, de engolir seco, de sentir cheiro de enxofre, rs.
    Que jererê foi esse, meu rei?
    A maior bad trip esse seu conto, não há outra definição. Mas essa última fala do Diabo matou a bad trip... foi um banho de realidade, aquele lirismo ácido, diabólico mesmo.
    Tenho medo de você, rs.

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  2. Então finalmente você achou o seu Diabo?! rs

    Eu li, e ninguém me impediu.

    Beijos

    Lu

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