quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Pausa Parnasiana

És a ferrugem contida na veia;
escapas languidamente
do momento que passeia
pelo beijo que te dei outrora.

No entanto, se faz vivo ardor da aurora
e em sublime firmamento me lapida.
És a glória do meu melhor beijo,
és a vontade em mim contida.

És o substrato do meu desejo,
que deseja, enfim, morrer,
se acaso tormento for viver
sem teu olhar a me enternecer.

Divina dúvida quando tu sorris
a bailar dentre diabos e serafins;
és a culpa do meu soneto embriagado
és o limbo do meu minuto desesperado.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Meu Gosto de Sangue

A rua tem seus sintomas mais peculiares enraizados em nós mesmos. Após passar pela minha porta simples de madeira, eu precisava dar continuidade ao que tinha feito. Estou em casa no momento, mas estava há três dias fora. Pois é, a rua te consome de fato; te traga para os seus bueiros mais sujos e seus cantos mais extravagantes. Pela primeira vez em muitos anos eu me sentia vivo.

Era a visão do bebê que está sendo parido.

Ainda não tomei banho e duvido muito que vá conseguir dormir. Saí daquela loja cheio de alguma coisa sem nome, porém repleta de explicações. Era a lua na suas quatro fases ao mesmo tempo, era o amor na tênue linha entre o ousado e o erro, era a fórmula pro real ainda por ser inventada, era o doce falar dos ventos, era a inexaurível sentença da vida, fragmentada em inúmeras razões. Era o tudo, o perdido que se tecia em mim como aranha em noite de banquete. Eu queria tudo ao mesmo tempo; em palavras, em sonetos, em risadas, em vírgulas mau usadas e nas minhas mãos...Nas minhas mãos eu carregava o infinito de uma noite só.

O melhor era me sentir sozinho. Naquela rua aonde vagavam as mais diversas personagens, a noite se fazia sempre presente e as pessoas se faziam sempre felizes. Solitárias, mas sempre felizes. Bebi litros de uma bebida quente que fez meu espírito rodar. Percebi que todos eram quem queriam ser. Portanto, passei a não ser mais eu, pois era muito chato ser alguém que ficava a maior parte do tempo em casa, correndo tragicamente atrás de uma inspiração que nunca aparecia. Naquele momento eu era a encarnação de algum poeta romântico do século dezenove. Um Rimbaud travestido em Baudelaire mais melancólico e viciado. Fui pegando o jeito e aprendendo a me criar. A noite era um ano inteiro. Era uma aprendizagem injetada direto na veia.

Foi quando ele apareceu. Estava tranqüilo na minha solidão rodeada e cheia de risos, quando percebi sua presença ao longe. Seu cigarro era calado e sua face maquilada como uma noite cheia de relâmpagos. Suas roupas eram modernas e representavam o que ainda estava por vir nas sensações. A sua presença era qualquer coisa que dançava entre o caos e a santidade. Na sua risada e nos seus olhos havia o brilho insano dos que desejam matar a sede de um deserto.

Nos olhamos e as nossas vidas se cruzaram pra sempre. Até agora tento entender o que foi aquele momento e acho que vou passar o resto dos meus dias tentando traduzi-lo de alguma maneira. Os extremos. O poeta romântico do século dezenove, o Rimbaud possuído por Baudelaire cara-a-cara com um David Bowie tentando ser algo mais iconoclasta do que ele. Uma simbiose entre a sua música e a transpiração popular de um bairro do subúrbio. Era um maravilhoso choque de tesão nos contrapontos e eu me deixei ir.

A noite não tinha fim e a rua não nos mostrava as suas curvas. O êxtase momentâneo não era resumido a um fator simples, mas sim complexo como eu e ele.

O que havia de tão necessário entre a gente? Porque procurávamos nossas mãos a todo o momento e mais tarde, quando as encontrávamos, fazíamos questão de nos lançarmos em uma guerra onírica?

Era o meu gosto de sangue. Pela minha boca, pela minha garganta, ele era o gosto de sangue que descia lento pela minha goela. O tempo todo em que estive ao seu lado foi o que senti: gosto de sangue.

Meu melhor amigo. Meu melhor concorrente, espião, escudeiro, ladrão, trapaceiro, conselheiro, amante, sabotador, coração! Minhas tripas do lado de fora, meus órgãos que eu conseguia ver. Não havia mais voz na minha noite, nem silêncio entre a gente. O que se passava era o alvorecer de uma inalcançável conexão astrológica. Como se o zênite do nosso céu mostrasse nossos ascendentes em câncer e peixes e despejasse sobre nossos corpos dezenas de sóis, e de signos e de mapas astrais que nos provavam o quanto temos um ao outro.

Quando amanheceu eu senti vergonha. Não queria voltar a ser eu nunca mais. Não queria dizer adeus às roupas do século dezenove e nem à performance despreocupada daquela rua.

A única coisa da qual eu queria distância era daquela criatura andrógina, do Bowie que encontrara Ney Matogrosso em algum show de rock clássico. O gosto de sangue na minha boca tornara-se insuportável. Os beijos não faziam mais efeito e seu sabor amargo fluía sem regras por dentro de mim.

Acabara.

No caminho de volta pra casa tentei repassar tudo o que se dera nessas três noites, mas só o que conseguia lembrar era do meu não arrependimento. Ao chegar em casa sentei aqui para relatar tudo o que havia me acontecido em verdadeiro estado de choque e maravilhamento. Mas a inspiração não veio e eu acho melhor mesmo não contar nada disso. Ninguém acreditaria em mim se dissesse que estive numa rua que ninguém mais conhece ou pode chegar. A rua está lá, mas não sei se estou disposto a entrar de novo naquela loja de portas, passar por tudo aquilo até conseguir sair de lá e encontrar tudo de novo. Deixarei o coração me levar aonde quiser que eu estou muito apaixonado no momento e não sei o que fazer.

Ao passar pela cozinha reparei que, estranhamente, a minha porta nova, de madeira simples estava no lugar da outra que quebrara. O gosto de sangue havia, enfim, saído da minha boca

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Portas & Tal.

Eu não sabia que a vida da gente mudava tanto depois que recebíamos uma visita do Diabo em nossa cozinha. Naquela noite, após subir para o meu quarto e fumar cinqüenta e sete cigarros de filtro amarelo e fumaça pesada, escrevi algumas páginas que se perderam no tempo. Dormi com a sensação de cabeça ébria e, estranho, de barriga vazia. O que estava dormindo junto comigo, no meu quarto?

Acordei com aquela sensação agitada. Com um silêncio sepulcral no quarto e dentro de mim, porém com um barulho na mente de folhas que revoaram a noite toda. O quarto era um mar de folhas amarelas. Peguei uma do chão, que estava embaixo do meu pé muito bem calçado numa meia verde. Rabiscos. Só rabiscos sem sentido. Porque eu não conseguia fugir do imenso clichê que era eu? Será que minha literatura era apenas uma enorme tentativa de fugir do meu velho neolirismo? Eu estava com nojo de mim mesmo! Nem mesmo o Diabo fizera nascer em mim essa coisa que chamam inspiração substantiva. Evitei fechar os olhos e sentir o peso das lágrimas sobre meu rosto patético.

O café-da-manhã foi solitário e com gosto de ontem. Sabe quando sua mãe trás alguma coisa da festa pra você e essa alguma coisa da festa está com gosto de ontem? Então, o gosto de ontem estava na minha boca, e não no café-da-manhã solitário. Enquanto mastigava aquele pão, pensando em algo mais útil pra fazer do meu dia, além de ficar só (tentando escrever) escrevendo sobre meu interior, e o interior dos outros, e o interior das coisas, reparei que a porta da cozinha, a mesma em que o Diabo estivera parado na madrugada anterior, não estava trancada. Caminhei com passos de meias verdes, calças preguiçosas e uma blusa comprada no carnaval de salvado em 2001. A porta estava quebrada. Já sabia o que fazer do meu dia.

Com ânimo novo, como quem cria alma nova, saí de casa com um objetivo: comprar uma porta nova para a minha cozinha. Ao passo que pus minhas calças jeans para o lado de fora do portão, notei um dia diferente. Era feriado? Eu tinha passado tanto tempo dentro de casa que havia perdido a noção dos dias? As ruas, como em dia de final de Copa do Mundo, estavam desertas. Porém, não era só isso. Havia algo de cinematográfico no ar daquele dia, algo de Bergman com Almodóvar. Senti a sensação na carne e comecei a caminhar como uma Carmen Maura pós-moderna protagonizando "Persona". Sem uma palavra nos lábios. Somente na alma. Sorri perante a possibilidade de caminhar sobre meu salto-alto imaginário sem os olhares curiosos e cristãos dos meus vizinhos. Vai ver a falta de transeuntes estava ligada ao frio. Fazia muito frio. Perambulei mais ou menos uma hora entre o bairro e não vi absolutamente ninguém. Vez ou outra vinha um carro, mas era como se não viesse.

De repente, como se tivesse aparecido por vontade própria, em uma esquina noir a encontrei. Com suas vitrines de vidro escuro e místico, suas portas de entrada feitas de carvalho e o letreiro elucidativo, dourado, com borrões do tempo: Portas & Tal, lia-se bem grande, na fachada da loja.

Perguntei-me porque do "& Tal". O que mais poderia vender lá dentro? Maçanetas? Enfim, entrei sem nenhuma emoção, empurrando as pesadas portas de carvalho e o que encontrei lá dentro é enigmático demais para não ser contado.

Após fechar as portas de carvalho atrás de mim, deslumbrei o que era o verdadeiro paraíso das portas. Um salão amplo, de uns muito metros quadrados, contemplado com portas do rodapé até o teto. Não! do chão mesmo até o teto. eram portas, portinhas, portões, pórtigos, portas duplas, de correr, pequenas, grandes, minúsculas! Portas espalhadas, encaixadas, de todas as maneiras, pelo chão, teto, paredes. Aonde coubesse uma porta, lá ela estava! Não havia me dado conta ainda, tamanho era o estado de choque e maravilhamento em que me encontrava, mas eu estava perdido! não sabia por qual das portas tinha entrado. Olhei com o olhar dos que carregam algo especial e acham tudo no mundo muito esplêndido e fiquei ali, sublimado com a loja de portas, girando sobre meu próprio eixo.

A boca aberta representava o silêncio do espanto. O momento.

"Seja bem-vindo", disse uma voz masculina às minhas costas. "Seja bem-vindo à Portas & Tal. Espero que possa lhe ajudar a encontrar o que procura..."

Olhei bem para a figura que se encontrava na minha frente. Era de um branco latente, como se jamais tivesse visto a luz do sol. Usava uma espécie de roupa pós-hippie, não sei ao certo, parecia algo antigo, usado pelos gregos. Possuía cabelos e barba compridos e transmitia um ar de paz...Mas uma paz que não era plena. Uma paz que poderia terminar a qualquer instante.

"Eu preciso de uma porta nova pra minha cozinha. Está quebrada.". Pensei em perguntar se eles entregavam em casa, mas ele se preciptou e disse, num tom de voz seguro e jovial.

"Não faço entregas em casa, mas fique tranqüilo e não se apresse pra escolher sua porta. Tenho certeza de que é uma escolha importante e, acima de tudo, definitiva."

"É só...Uma porta que devo escolher...". Respondi, acreditando ser o certo a dizer.

"Tem certeza?". Ele perguntou, "pois então, escolha..."

Num gesto amplo e comovente, ele mexeu com o braço direito mostrando as inúmeras portas que a loja possuía. Fiquei calado. Eram tantas e tão diferentes. Eu queria todas! De repente senti uma vontade quase psicossomática de trocar todas as portas da minha casa, todas as portas da minha vida!

Ali, olhando aquelas entradas, aquelas portas, me senti diante da esfinge que poderia ter devorado Édipo. Olhei ao redor, percebi finalmente que não saberia sair dali. Pelo menos não através da porta pela qual havia entrado. Deixei-me. Deixei-me perdido a contemplar aquele visual único, abstrato, como uma exposição de arte contemporânea. Eu era o espectador único de uma obra que jamais seria exposta em qualquer galeria ou exposição ou vernissage do mundo. E era tão profundo que ultrapassou a minha vida, tão vazia e sem leme, e sem inspiração...E sem algo que a inspirasse a deixar de ser tão blasé. Fui pego no susto da hora e da atuação. Acabara o tempo e eu não era o espectador único que fora. Eu era eu: alguém que não sabia que porta tomar.

Fui invadido por uma sensação de agonia enorme e disse "não posso escolher...São tantas, tão bonitas, de jeitos e formas tão diferentes..."

O homem me olhou sério, porém cheio de compaixão e disse "não tem problema. Muitos não sabem que porta escolher, têm medo do que podem encontrar atrás delas. Enfim, ficam aqui por muito tempo, divagando, escolhando...Pensando, repensando. Tentando achar a porta pela qual entraram..."

"Quem é você? O que faz aqui?", perguntei.

"Pode me chamar de filósofo. Estou aqui para ajudá-lo a escolher a melhor porta pra você. Não há porta errada. Algo te fez entrar nesta loja e isso vai te ajudar a escolher uma porta nova."

"E se eu não escolher, como sair daqui?"

"Não há outra maneira de sair", ele disse, "olhe ao seu redor...Não tem como achar a 'sua' porta. Ela ficou no passado no momento em que você entrou nesta loja. A única maneira de sair daqui é abrindo uma porta qualquer e atravessando-a. Eu não não sei aonde as portas vão dar. Nâo faço ideia. É impossível decorar todas as saídas, às vezes fica muito tempo sem que alguém entre aqui. Só sei que se você não segurar uma dessas maçanetas e a girar, você nunca irá sair."

Eu já não estava mais preocupado em comprar uma porta nova. Queria sair dalí! Porque me sentia tão angustiado, aflito, com medo? Era só uma escolha! Uma simples escolha! Bastava escolher uma porta, girar a maçaneta e sair. Pronto!...Sair pra onde? Passava todo o tipo de coisa pela minha cabeça. Os anos desperdiçados da minha vida, os amores que nunca souberam que foram amados por mim, os amigos que sucumbiram à minha doença chamada claustro. Pensava na minha solidão crônica e afetada e em como tudo isso me envolvia como um abraço reconfortante. Cada porta daquela representava um caminho torto meu. Qualquer que fosse a minha escolha, qualquer que fosse a porta atravessada por mim, seria minha vida que estaria esperando do outro lado, seria uma escolha feita pela mesma pessoa que entrou na "Portas & Tal".

"Escolha por mim.", as palavras saíram de dentro de mim num impulso sincero.

"Não posso, meu caro. A escolha é sua, a escolha é minha. Não existe a possibilidade de troca. Escolher por você seria como assumir os aleijões seus e enfrentá-los com a coragem de uma mãe ao proteger os filhos. Eu sou fraco. Não sei de nada. O mundo pra mim é ficar aqui, aliviar a dor da escolha, a dor da dúvida, a dor sincera e mais externa de cada um. O que é uma escolha?"

"Uma escolha", comecei, "uma escolha é o ato de optar por uma determinada coisa, situação, enfim..."

"E qual é a sua situação no momento?".

"Bom...Eu...Eu preciso escolher uma saída. Uma porta que me leve para uma saída...Que eu não sei qual é...".

"Não", disse o filósofo, "a sua real situação...".

Ele não me conhecia, mas ele me sentia. Suspirei cheio de pesar e olhei pra cima. Como sair por aquelas portas?

"Minha situação é a de alguém que busca por si mesmo, mas que muitas vezes tem muita preguiça de continuar buscando. Sinto como se não fizesse diferença alguma perante a grandiosidade da vida e da morte. Escrever é um fardo, mas é o meu ritual. Inclino-me perante o meu sofrimento calado dia após dia e o ponho em folhas amarelas à noite. E assim como o gozo é o desperdício da vida e por isso é o grande prazer, é quando nos sentimos próximos aos deuses imortais, eu me regozijo na minha própria dor quando vejo minha parte mais feia, mais sem envólucros, mais tenra ser enaltecida de maneira a ser aplaudida e premiada. O que eu mais queria era guardar essa parte bem escondida dentro de mim, de qualquer lugar, mas é isso que eu sou. Aceito a condição. Se nasci para me mostrar, a mim mesmo, da maneira que sempre fiz questão de esconder, que seja."

"Não há escolha em sermos nós mesmos", disse o filósofo, "eu entrei aqui fazem quinze anos e nunca consegui escolher uma porta. Jamais tive coragem. Entrei pois precisava de uma porta nova pro meu quarto e encontrei este enígma, vazio, somente com portas, portas, portas...Hoje, não minto, ainda penso em escolher uma porta e sair, mas o que fazer depois que sair? O que vai acontecer? Para onde eu vou sair? Pergunto-me se eu realmente escolhi não sair daqui.."

Nos encaramos. Por um minuto eu pensei em contar pr'aquele homem o quão bela a vida pode ser e quão encantadores são seus cheiros, gostos, risadas, amores, aventuras! E em quanto tempo você pode suar transando uma pessoa que faz o tempo parar, ou ainda em como as paixões efêmeras são as mais gostosas, pois elas não te impedem de se apaixonar, apaixonar, apaixonar e multiplicar seu amor mais visceral e pulsante através do tempo e do espaço! E que sempre há aquele carinho quase metafísico, que ultrapassa qualquer compreensão matemática e que as palavras podem traduzir um oceano inteiro de sentimentos e convencer quem quer que seja de que um beijo pode realmente não significar nada, mas que também pode ser o início de uma história.

Foi então que percebi que primeiro eu precisava analisar tudo isso para ter certeza de que realmente acreditava nessas coisas.

Continuamos nos encarando. Eu não tinha medo mais. A escolha daquele homem, do filósofo, havia me redimido de qualquer erro que eu poderia vir a cometer. Eu via a minha porta, eu sabia qual era a minha porta. Aonde ela me levaria? Já não era mais uma preocupação minha, mas sim da minha vida.

Naquele momento eu tinha certeza apenas de uma coisa: eu queria sentir.

Olhei pra frente e via a minha porta. De madeira, simples. Olhei para o filósofo e lhe fiz um gesta com a cabeça. Ele me olhou decidido e me viu caminhar em direção à saída.

Peguei na maçaneta gelada, senti sua temperatura por um momento e sem olhar pra trás a girei.

Era uma rua. Era apenas uma rua o que eu via.

domingo, 2 de maio de 2010

A porta da cozinha não impede o Diabo de entrar

Tem dias em que você não se importa com o que vai escrever. Nesse caso, era uma noite. Uma noite em que o coração batia tão apertado quanto batia gelado. E esse coração era o meu.

Sem nenhuma emoção, peguei uma caneta bic barata, roubada do balcão da recepção da onde estudo, e comecei a escrever sobre como o tempo e as coisas e o mundo e tudo mais fizeram meu amor secar, apodrecer e cair como uma pinha velha num dia de natal. Porém, ao passo que formava as letras sobre a folha amarela, percebi que aquilo não era mais eu. Não fazia mais parte de mim, simplesmente. Eu precisava ser sincero. Corri os olhos por sobre meu corpo e para dentro de mim, respectivamente. E o que vi, foi assombroso: um homem velho estava dentro das minhas calças largas para ficar em casa no frio, usando meu casaco de listras ridículo e calçando as minhas meias de jogador de futebol, que só servem para dormir.

Praticamente não tenho móveis em meu quarto, muito menos espelhos, mas não conseguia acreditar que fiquei por tanto tempo sem me ver, sem me enxergar.

Corri os dedos pelos meus cabelos; mas só para ganhar tempo. Com os mesmos dedos, rasguei a folha amarela aonde estava escrito sobre como o tempo e as coisas e o mundo e tudo mais fizeram meu amor secar, apodrecer e cair como uma pinha velha num dia de natal, e esse gesto me deu força, me sentia inspirado! O silêncio da casa e o barulho irritantemente excitante da caneta riscando a folha me davam tesão em voltar a fazer o que eu mais amava, o que eu fazia de melhor: sofrer as dores do parto de um texto concebido quase que assexuadamente. Como se um braço meu caísse na terra e dali germinasse um outro ser que também sou eu, mas não é meu. É uma parte de mim que dou para quem quiser e quem quiser pegar sem avisar, sem pedir ou pagar.

Como que entorpecido pelo meu ego de quase-artista, senti o mundo rodar e a mão doer sobre o peso da minha inspiração. "Porcaria!". Disse para mim mesmo, mas sem sequer mexer os lábios. Eram meus órgãos falando comigo. Dizendo que não me serviam de nada tantos corações ou pulmões ou rins ou cérebros se fosse para produzir algo daquele jeito. Ainda era o que eu fora em outrora. Num passado não muito distante, onde ainda existiam príncipes encantados, castelos luminosos e declamações de amor eterno num asfalto tardio. Num passado onde o sarcásmo não habitava.

Sem saber o que fazer, risquei todas as palavras lúdicas da folha amarela e arranhei minha garganta seca. Sede. Sentia sede. Num gesto natural, abri a porta do meu quarto que banhou de luz a escuridão do corredor. Caminhei irritado com minha falta de secura objetiva; sentia a garganta esquentar dentro de mim e a sede pedir para morrer.

Desci os degraus com cautela, não queria que ninguém acordasse. Mas, o que começo a relatar aqui para quem me lê é como descrever a luz sem jamais tê-la visto. Chegando na sala, percebi que alguém deixara a TV ligada no mudo. Aquela luz que parece dançar; ora um tango argentino, ora um samba de avenida; doeu-me nos olhos, mas me ajudou a encontrar o caminho para a cozinha.

Abri a geladeira sem pressa, peguei uma garrafa de plástico e derramei o líquido no copo. Abri o filtro e misturei as duas águas: a gelada com a de temperatura ambiente. Sentei-me de pernas cruzadas e pus-me a enrolar um tufo de cabelo e a beber a água, simultaneamente. "Parece que esfriou mais", pensei. Pensava no frio, nas palavras, na minha dor de dente que teria que esperar mais uma semana.

Uma espécie de "toc toc" bateu na minha cabeça e eu a balancei, como a querer espantar algum pensamento inprodutivo querendo entrar. Mas o barulho que pedia passagem insistiu tanto que me fez olhar para a porta da cozinha. Pelo vidro, do lado de fora, era possível ver um homem alto, elegante sem ser exatamente bonito, de cabelos negros e olhos indescritíveis, parado a porta. Não me pergunte como, mas eu sabia quem era ele.

"Não vai me deixar entrar?", perguntou, ele.
Era como se eu ouvisse a voz dele todos os dias, o tempo todo. Era tão familiar, porém tão falsamente materna. Como...Como um exímio vendedor. Como aqueles mascates que usavam do tom mais doce do tom mais doce para convecer da qualidade de seu produto.
"Acho que...não sou bem vindo aqui...", disse mais uma vez, vendo que eu não acreditava no que via.
"Não quero que você entre", disse sem saber que dizia aquilo.
"Ora...A porta da cozinha não impede o Diabo de entrar", respondeu com um sorriso debochado. Logo depois de dizer isso que acabei de contar, ele estava dentro da minha cozinha.

Apoiado na pia com uma classe jamais vista por homem algum, ele acendeu um cigarro jamais visto por nenhum ser humano e sussurrou uma fumaça azul encantada que pairava no ar como serpentinas adestradas. Deslumbrado com tamanha mise-en-scéne para adentrar um espaço, quase deixei cair o copo com água misturada.

"Sabe, é grosseria deixar uma visita de pé. Ainda mais se tratando de alguém tão importante como eu"
"E tão improvável", foi só o que consegui dizer.

"Nem tanto. Caso não tenha percebido, vou lhe contar com primazia: eu sou o que você vem procurando. Eu sou o novo. Seus diálogos de outrora e a sua língua portuguesa fadada ao esquecimento não comovem mais a você mesmo. Não aos outros; os outros, sim, admiram o que você faz. Mas, meu caro, a massagem no âmago do teu ego é o que te dá forças e impiedade para contiuar sendo quem você é e o que você faz."

"Pensei que fosse o diabo", respondi, confuso.

"Chame como queira", ele sentou como se flutuasse sobre a cadeira e me olhou nos olhos, com aqueles olhos sem descrição, sem cor. "Eu vim porque você precisava".

"Mas, como vou saber o que fazer? Sinto-me perdido, distante de mim. é como apostar corrida comigo mesmo. Meus diálogos com a vida morrem a cada dia e sinto se esvair o pouco que ainda tenho para dar..."

Ele riu. Ah, e a risada dele fez brilhar como gelo até o último átomo da minha alma. "A morte, meu caro...É necessário morrer todos os dias. A vida é uma invenção da matéria física. Desnecessária. Eu sei o que você precisa mais do que você mesmo. Mas não porque eu sei de tudo ou eu veja tudo, não...Eu sou uma parte de você ainda inalcançada por você mesmo. Um pedaço seu pairando pelo espaço. Sou sua antimatéria sugada por todo mundo. Menos por você."

"Eu não sou uma metáfora de você, nem uma suposição de você. Sou você. Só estou na sua frente, ganhando a corrida."

Enquanto ele falava de antimatéria e suposições da matéria, eu sentia a cabeça aliviar. Era estranho, porque eu estava diante do Diabo. Do Diabo em pessoa. Eu o via. Não deveria, sei lá, cair falando em línguas ou, ou...Ou sentir algum tipo de posessão?

Minha mente vagava frouxa, leve e sinuosa pelo ar, e era como poder toca-la nas bordas, como uma bolha de sabão, aonde a graça é o medo de estoura-la. Sentia-me esvaziar de tudo que eu fora no passado e me encher de algo novo. Com tudo que fica entre o medo e a vontade de viver. Era esse meu paradoxo.

O Diabo continuava a falar, eu continuava a entender, mas ainda tinha inúmeras dúvidas na cabeça. Não sei se falei algo ou não, mas ele respondeu:

"Essas dúvidas, meu amigo, são a poesia que você precisa para sofrer, desamar e retribuir a você mesmo, nas suas folhas amarelas, o tanto de dor que sente e espreme dos olhos teus todos os dias. Seria enfadonho lhe contar todos os segredos que sei sobre você, afinal, o que te move é a dúvida. Sei que você estava entediado. Tão entediado que me procurou inconscientemente. Mas eu sou você. Eu sou a parte mais ousada de todo e qualquer ser vivo que anda, respira e morre. Poucos adormecem com vontade de me/se conhecerem assim, dessa forma tão profunda e ilítica. O medo é comum a todos os homens; a necessidade, a angústia, são o motor, a engrenagem orgânica de quem se sente no inferno, e faz disso o fogo de todos os dias."

Seus olhos ganharam cor. A mesma cor que os meus. Vislumbrei o Diabo por uma última vez, e ele saiu da mesma maneira que entrou: pela porta da cozinha.

Depois desse dia, eu me tornei no meu próprio assassino. Eu mato a mim mesmo todos os dias.