segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Meu Gosto de Sangue

A rua tem seus sintomas mais peculiares enraizados em nós mesmos. Após passar pela minha porta simples de madeira, eu precisava dar continuidade ao que tinha feito. Estou em casa no momento, mas estava há três dias fora. Pois é, a rua te consome de fato; te traga para os seus bueiros mais sujos e seus cantos mais extravagantes. Pela primeira vez em muitos anos eu me sentia vivo.

Era a visão do bebê que está sendo parido.

Ainda não tomei banho e duvido muito que vá conseguir dormir. Saí daquela loja cheio de alguma coisa sem nome, porém repleta de explicações. Era a lua na suas quatro fases ao mesmo tempo, era o amor na tênue linha entre o ousado e o erro, era a fórmula pro real ainda por ser inventada, era o doce falar dos ventos, era a inexaurível sentença da vida, fragmentada em inúmeras razões. Era o tudo, o perdido que se tecia em mim como aranha em noite de banquete. Eu queria tudo ao mesmo tempo; em palavras, em sonetos, em risadas, em vírgulas mau usadas e nas minhas mãos...Nas minhas mãos eu carregava o infinito de uma noite só.

O melhor era me sentir sozinho. Naquela rua aonde vagavam as mais diversas personagens, a noite se fazia sempre presente e as pessoas se faziam sempre felizes. Solitárias, mas sempre felizes. Bebi litros de uma bebida quente que fez meu espírito rodar. Percebi que todos eram quem queriam ser. Portanto, passei a não ser mais eu, pois era muito chato ser alguém que ficava a maior parte do tempo em casa, correndo tragicamente atrás de uma inspiração que nunca aparecia. Naquele momento eu era a encarnação de algum poeta romântico do século dezenove. Um Rimbaud travestido em Baudelaire mais melancólico e viciado. Fui pegando o jeito e aprendendo a me criar. A noite era um ano inteiro. Era uma aprendizagem injetada direto na veia.

Foi quando ele apareceu. Estava tranqüilo na minha solidão rodeada e cheia de risos, quando percebi sua presença ao longe. Seu cigarro era calado e sua face maquilada como uma noite cheia de relâmpagos. Suas roupas eram modernas e representavam o que ainda estava por vir nas sensações. A sua presença era qualquer coisa que dançava entre o caos e a santidade. Na sua risada e nos seus olhos havia o brilho insano dos que desejam matar a sede de um deserto.

Nos olhamos e as nossas vidas se cruzaram pra sempre. Até agora tento entender o que foi aquele momento e acho que vou passar o resto dos meus dias tentando traduzi-lo de alguma maneira. Os extremos. O poeta romântico do século dezenove, o Rimbaud possuído por Baudelaire cara-a-cara com um David Bowie tentando ser algo mais iconoclasta do que ele. Uma simbiose entre a sua música e a transpiração popular de um bairro do subúrbio. Era um maravilhoso choque de tesão nos contrapontos e eu me deixei ir.

A noite não tinha fim e a rua não nos mostrava as suas curvas. O êxtase momentâneo não era resumido a um fator simples, mas sim complexo como eu e ele.

O que havia de tão necessário entre a gente? Porque procurávamos nossas mãos a todo o momento e mais tarde, quando as encontrávamos, fazíamos questão de nos lançarmos em uma guerra onírica?

Era o meu gosto de sangue. Pela minha boca, pela minha garganta, ele era o gosto de sangue que descia lento pela minha goela. O tempo todo em que estive ao seu lado foi o que senti: gosto de sangue.

Meu melhor amigo. Meu melhor concorrente, espião, escudeiro, ladrão, trapaceiro, conselheiro, amante, sabotador, coração! Minhas tripas do lado de fora, meus órgãos que eu conseguia ver. Não havia mais voz na minha noite, nem silêncio entre a gente. O que se passava era o alvorecer de uma inalcançável conexão astrológica. Como se o zênite do nosso céu mostrasse nossos ascendentes em câncer e peixes e despejasse sobre nossos corpos dezenas de sóis, e de signos e de mapas astrais que nos provavam o quanto temos um ao outro.

Quando amanheceu eu senti vergonha. Não queria voltar a ser eu nunca mais. Não queria dizer adeus às roupas do século dezenove e nem à performance despreocupada daquela rua.

A única coisa da qual eu queria distância era daquela criatura andrógina, do Bowie que encontrara Ney Matogrosso em algum show de rock clássico. O gosto de sangue na minha boca tornara-se insuportável. Os beijos não faziam mais efeito e seu sabor amargo fluía sem regras por dentro de mim.

Acabara.

No caminho de volta pra casa tentei repassar tudo o que se dera nessas três noites, mas só o que conseguia lembrar era do meu não arrependimento. Ao chegar em casa sentei aqui para relatar tudo o que havia me acontecido em verdadeiro estado de choque e maravilhamento. Mas a inspiração não veio e eu acho melhor mesmo não contar nada disso. Ninguém acreditaria em mim se dissesse que estive numa rua que ninguém mais conhece ou pode chegar. A rua está lá, mas não sei se estou disposto a entrar de novo naquela loja de portas, passar por tudo aquilo até conseguir sair de lá e encontrar tudo de novo. Deixarei o coração me levar aonde quiser que eu estou muito apaixonado no momento e não sei o que fazer.

Ao passar pela cozinha reparei que, estranhamente, a minha porta nova, de madeira simples estava no lugar da outra que quebrara. O gosto de sangue havia, enfim, saído da minha boca

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